Breve história – de lá pra cá…

Muito tempo se passou desde que um primeiro papagaio verde foi colocado à venda em uma feira em Antuérpia, como nos mostra o quadro de Joachim Beuckelaer, datado de 1566.

Logos após, vieram muitas araras, tucanos, saguis e tatus brasileiros, que enriqueceram as coleções dos primeiros naturalistas.

Nos quadros de Jan Breughel o Velho (início de século XVI) se pode observar que estes animais exóticos também passaram a fazer parte de muitos lares burgueses, dando um certo prestígio à família que o possuia.

Em 1584 uma notícia informou sobre a prisão em Antuérpia de quatro “Brasiliaenen”, ou brasileiros, Melchior Albares, Anthonio Ghercy, Pedro Borges e Juan Aldres1.

Tendo chegado à cidade tarde da noite, encontraram as portas já fechadas pelo horário de recolher e resolveram entrar pulando o muro.
Só foram liberados após o pagamento de multa de 100 florins, pelos cônsules da nação portuguesa e o devido pedido de desculpas.
Os cônsules argumentaram que eram gente simples e ignorante, que nunca estivera em outro lugar senão no Brasil e no mar.
Tudo indica que eram mestiços, mamelucos ou mesmo índios, marinheiros de um navio português procedente do Brasil.

É possível que uma tripulação semelhante tenha estado em Flandres em viagens anteriores de navios portugueses.

Em Zandvliet, uma pequena cidade perto de Antuérpia, já quase fronteira com a Holanda, existe uma “Brazilianenstraat” e referências a uma “gente de pele escura” que vivia lá de uma forma meio “selvagem”, em choças e “ao deus-dará”.
Atribuía-se sua origem a soldados vindos com o exército espanhol no século XVI.

Existe uma teoria mais plausível que diz tratar-se, na realidade, de emigrantes belgas, que teriam retornado miseráveis do Brasil, no século XIX, e teriam se reinstalado em casas abandonadas.

À partir de 1807 o Porto de Antuérpia abriu-se à importação de produtos brasileiros, como o café, a madeira e o couro.

O primeiro “tratado de comércio” firmado entre Brasil e Bélgica data de 1834, e que teve também como função subjacente o reconhecimento “comercial” da Bélgica como um reino autônomo.

Não nos esqueçamos de que a Bélgica foi oficialmente declarada independente dos Países Baixos apenas em 1831!

Levou ainda um certo tempo para que a primeira colônia brasileira se estabelecesse na Bélgica…

À partir de então, 1834, o Brasil passou a manter um ou mais adidos e um cônsul-geral. Alguns destes representantes do governo vieram com famílias numerosas.

Esta afirmativa é fácil de ser comprovada através de uma visita ao cemitério de Laken.
Lá estão os jazigos das famílias Souto Maior, Ipanema de Barros e Moreira Barros.

Evidentemente estas famílias, habituadas que eram a um nível sóciocultural elevado, recebiam vários viajantes e artistas brasileiros tais como o pintor Manuel de Araújo Porto-Alegre e o poeta Domingos Gonçalves Magalhães, que excursionaram pela Bélgica por volta de 1837.

Aliás, foi na Bélgica que este poeta – Domingos Gonçalves –  concluiu o seu drama-romântico em verso, considerado a primeira obra do teatro brasileiro e publicado em 1838, “Antonio José ou o Poeta e a Inquisição”.

Os estudantes  brasileiros sempre foram uma presença importante na Bélgica, desde os tempos do Império.

Entre 1835 e 1914 matricularam-se cerca de 700 brasileiros, dos quais 237 na Universidade Livre de Bruxelas, 217 na Universidade de Gand, 100 na Universidade de Liège, 68 na Universidade de Lovaina, 37 na Faculdade de Agronomia de Gembloux, 5 na Université Nouvelle de Bruxelles – uma dissidência temporária da Universidade Bruxelas –, e 2 no Instituto Superior de Comércio de Antuérpia.

Estes permaneciam apenas durante um tempo limitado. Tinham pressa em retornar, visto que o clima e cultura muito diferentes não serviam de estimulante para a permanência dos brasileiros.

Em sua primeira viagem à Europa em 1912, o escritor, jornalista e político brasileiro Gilberto Amado – primo de Jorge Amado – se surpreendeu, com uma dezena de seringueiros da Amazônia num restaurante de Ostende, vestidos de branco, “festejando com bonitas mulheres nos joelhos”.

No mesmo balneário, um certo casal Asseloos anunciava o ensino da “maxixe brésilienne”2.

A festa acabou com a invasão das tropas alemãs em agosto de 1914, quando os diplomatas redigiram uma lista com os nomes de uns 400 brasileiros que deveriam deixar a Bélgica.

No pós-guerra a presença brasileira se reativou, primeiro na área cultural, promovida por uma tal “Union Brasilo-Belge”, fundada em 01 de janeiro de 1951, ainda existente.
Nesse mesmo ano houve a estréia aqui do maestro Eleazar de Carvalho no “Palais des Beaux-Arts de Bruxelles”.

Magda Tagliaferro, pianista franco-brasileira considerada uma das 20 melhores do mundo fez, em 1952, uma turnê belga e participou do júri do “Concours Reine Elisabeth”.

Heitor Villa-Lobos dirigiu, em 1958, a orquestra belga na inauguração do Pavilhão do Brasil na “Exposition Universelle”.

Além de Villa-Lobos, já mundialmente reconhecido pelos amantes da boa música, a Expo 58 permitiu descobrir artistas do porte de Cândido Portinari e Cícero Dias.

O “Palais des Beaux-Arts” mostrou Burle Marx, em 1957 e Lasar Segall, em 1960.

Foi em parte uma troca, um retorno às participações belgas na Bienal de São Paulo.

Este importante apreço cultural mútuo levou, em 1960, à assinatura de um “acordo cultural”.

Nesta mesma época os belgas começaram a descobrir o futebol brasileiro nos encontros do Botafogo e do Santos com o Anderlecht e o Beerschot.

Mesmo se já nos anos 80 vários jogadores de futebol foram contratados por clubes belgas, só por volta de 1990 a presença brasileira começou a se tornar realmente visível.

Em 1973, um grupo de cerca de 40 refugiados brasileiros que viviam no Chile encontraram na Bélgica o refúgio desejado, após o golpe dado contra o presidente Allende.

Retorno dos estudantes, a partir dos anos 1960, à procura de formações inexistentes ou pouco desenvolvidas no Brasil, como engenheiro de cervejaria, psicólogo, psicanalista, demógrafo, além de diversas outras especializações e doutorados.

No período do golpe militar no Brasil, em 1964, vieram outros tantos refugiados políticos, artistas, jogadores de futebol e… mais estudantes!

Quando, a partir dos anos 80, na sequência das mudanças políticas no Brasil esta primeira onda de imigração voltou “para casa”, generalizou-se a ideia de que a Bélgica era um refúgio, aberto aos brasileiros.

O tempo, a distância, o desconhecimento e a situação econômica sempre tão instável e dura, transformou esse conceito em sonho e possibilidade de uma vida melhor para muitas pessoas.

Aliado a isso, o fato de o brasileiro não precisar de visto para entrar no “Espaço Schengen”, contrariamente a todas as dificuldades para se conseguir um visto para os EUA, – sonho de uma outra geração de brasileiros- a Bélgica aparece como um destino privilegiado, principalmente após a crise que derrubou a economia portuguesa.

O Brasil sempre foi um país tradicional de imigração, mas pela primeira vez na sua história está passando pelo processo chamado de “migração negativa”. Pelo menos quatro milhões de brasileiros emigraram nos últimos anos, principalmente a partir de 2005.

A Bélgica, de acordo com as informações oficiais, tem uma população de 11.267.910 habitantes (01/01/2016).

Destes, 1255.270 – cerca de 11% do total da população residente na Bélgica – são estrangeiros, oriundos de outros países europeus em sua grande maioria (68%).

  • 7% são de outros países europeus, sendo a Turquia o principal país de origem.
  • 8% são de um país Africano do Norte, com uma grande maioria originária do Marrocos.
  • 6,5% vem de um países africanos – R.D.Congo como a mais significativa.
  • 7% vêm de um país asiático, principalmente da China e Índia
  • 2% são de um país latino-americano, principalmente do Brasil
  • 1,5% da América do Norte

Somos hoje 3.949 brasileiros legalmente inscritos nas “Communes Belges” além das 3.000 pessoas que são naturalizadas belgas e/ou outras.

Oficialmente então, somos quase 7 mil mas…

Segundo estimativa do Ministério da Relações Exteriores, somos hoje uma população variando entre 40 a 50 mil pessoas, o equivalente a mais ou menos 0,4% do total da população belga.

Um grãozinho de areia, sem dúvida, mas um grãozinho de areia bem quentinho, bem tropical, que começa a aparecer, a fazer história.

Temos empresários, artistas, jornalistas, executivos, médicos, cientistas e gente, simples e muita batalhadora!

Nos falta talvez ainda um representante político correto que represente essa comunidade que não pára de crescer e cujos filhos estão aqui, estudando e crescendo como pessoas íntegras e integradas!

Com certeza, nosso “BB” – Bélgica/Brasil – é uma mistura que dá certo!

No próximo número, começaremos nossa pequena viagem ao mundo “BB” das artes!

Encontro vocês lá…

Grande beijo e até!!!

Para quem quiser descobrir alguns dos artistas mencionados nesta matéria, eis os links:

Magdalena Tagliaferro

Villa-Lobos

Fontes

  • Centre pour l’Egalité des Chances, Migration, rapport annuel 2012, p. 28 et suivantes
  • Estudo da Organização Internacional para as Migrações -OIM
  • Estudo realizado pela Universidade Livre de Bruxelas
  • Brasil e Bélgica – cinco séculos de conexões e interações

Cet article a été initialement publié dans la revue Revista Emigrar

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Notes

Notes
1 Bulletin des Archives d’Anvers, 5, 264
2 Le Carillon, 28.02.1914